A relevância do movimento das finanças sociais e negócios de impacto

Ricardo Abramovay: preocupação com a qualidade do que a economia oferece à sociedade é fundamental (foto divulgação/ICE)

Caminhos para transformar o Brasil em um país inovador

Ao dizer que as pessoas que atuam no campo das finanças sociais e dos negócios de impacto “são protagonistas de um dos mais importantes movimentos sociais do Brasil, um movimento que procura mostrar que juntar atividades econômicas regidas pela racionalidade econômica e objetivos, valores úteis para a sociedade, não é uma quadratura do círculo, mas sim um caminho para o futuro”, o professor Ricardo Abramovay (*), especialista em economia socioambiental da Universidade de São Paulo, recebeu muitos aplausos de centenas de participantes do Fórum de Finanças Sociais e Negócios de Impacto, realizado no início de junho em São Paulo pelo Instituto de Cidadania Empresarial (ICE), em parceria com o Impact Hub e a Vox Capital. Abramovay participou do painel “O Impacto comprovado: tecnologia e mensuração”.

Leia abaixo os principais pontos da palestra do professor Abramovay no evento.

Sobre o cenário mundial, as finanças sociais e os negócios de impacto

Nos últimos quarenta anos, a situação social mundial melhorou de maneira impressionante e espetacular. Quarenta anos atrás, um terço da humanidade passava fome. Hoje, é uma vergonha que ainda tenhamos quase um bilhão de pessoas em situação de fome. Aumentou a longevidade, diminuiu a taxa de natalidade, salvo em alguns países, o acesso à educação aumentou de maneira impressionante e vivemos um boom das energias renováveis.

Mas se é assim, por que estamos aqui? Se é verdade que a situação social mundial está melhorando, será que não poderíamos dizer que as finanças já são sociais? E que os negócios já têm impacto? Os dados mostram esses impactos, as iniciativas econômicas foram financiadas por alguém. Nós estamos aqui porque consideramos que essas evidências, que acabo de trazer de maneira superficial, são, no mínimo, unilaterais. Elas escamoteiam ao menos quatro questões – ou quatro exemplos – que mostram o quanto é perigosa a rota que estamos adotando na relação entre a economia e a sociedade.

Sobre biodiversidade, alimentação, revolução digital e mudanças climáticas, e a atual relação entre economia e sociedade

O primeiro exemplo é o da biodiversidade. O último relatório do State of Green Business 2018 aponta que se as empresas tivessem que pagar pelo uso da biodiversidade, o custo corresponderia a praticamente o valor do seu faturamento líquido. Em um país como o Brasil isso é muito importante, quando vivemos o ataque permanente às nossas áreas de conservação, o desprezo pela manutenção dessas áreas e a destruição da biodiversidade.

O segundo exemplo é a alimentação. Não há dúvida que a alimentação mundial melhorou, mas se somarmos a quantidade de pessoas obesas e com sobrepeso, esse número será superior ao de pessoas vivendo na situação de subalimentação. Nos Estados Unidos, hoje, 40% da população é obesa e a Grã-Bretanha se aproxima desse patamar. A obesidade está ligada a um modelo de negócio que acentua a oferta de produtos ultraprocessados. Nos EUA, a oferta de ultraprocessados corresponde a 60% da ingestão calórica, na Grã-Bretanha, a 50%. As pessoas não são obesas na França, na Itália ou em Portugal, porque nesses lugares se come pão, vinho e tomate. É onde o big food, a grande indústria oferece às pessoas produtos que são de baixa qualidade alimentar, baratos, poluentes e prejudiciais à saúde.

O terceiro exemplo é o da revolução digital. Os benefícios são inúmeros, mas ao mesmo tempo, o escândalo Cambridge Analytica mostrou o quanto as sociedades contemporâneas tornaram-se vulneráveis na sua cidadania pela invasão permanente da privacidade de que nós estamos sendo objeto e que nada disso foi resolvido a partir dos depoimentos recentes de Mark Zuckerberg nos parlamentos norte-americano e europeu. Quarenta por cento das crianças norte-americanas, entre zero e oito anos, possuem um iPad. Assim como temos uma obesidade alimentar, estamos vivendo também uma obesidade digital.

E mudanças climáticas são o quarto exemplo. Claro que estão sendo feitos progressos muito importantes, mas nós continuamos com a matriz energética e de transporte baseada fundamentalmente em combustíveis fósseis. O ritmo de redução das emissões de carbono, de acordo com relatório da PricewaterhouseCoopers, está muito aquém do necessário. Em 2036, nós já teremos esgotado nosso orçamento de carbono que nos permitiria ficar abaixo de 2 graus.

Por que eu estou dizendo isso? Porque é muito importante saber o que queremos da economia. As pessoas que estão aqui, de um lado estão fazendo algo dificílimo que é levar adiante e realizar os empreendimentos nos quais elas estão envolvidas. Mas, mais importante ainda é que elas representam um movimento social que vai fazer pressão sobre os grandes atores da vida econômica para que a lógica do modelo de negócios a partir do qual nós estamos funcionando hoje se transforme.

Sobre questões fundamentais para as finanças sociais

Essa transformação passa por três perguntas fundamentais. Primeira pergunta: ‘o que a economia está oferecendo à vida social?’ Essa não é uma pergunta óbvia do ponto de vista das ciências sociais contemporâneas. Como a economia é descentralizada e os atores econômicos fazem o que querem e são guiados pelo mercado, ninguém pode impor ao outro aquilo que ele vai oferecer.

No entanto, no mundo hoje com 7,5 bilhões de habitantes, caminhando para 10, talvez 11 bilhões, é fundamental a gente se preocupar com ‘qual é a qualidade daquilo que hoje é oferecido para a vida social?’ Essa é uma questão fundamental para as finanças sociais a meu ver. Não basta que as finanças sociais criem empregos, gerem impostos e contribuições. É fundamental que as finanças sociais façam isso que meus companheiros de mesa expuseram. Mas façam isso em uma escala que seja mainstream e dominante.

Essa deve ser a primeira preocupação: o que nós estamos oferecendo à vida social? Um relatório recente do World Resources Institute mostrou que os americanos compram hoje, per capita, 36 quilos de roupa por ano. O relatório da Ellen McArthur Foundation, em parceria com a estilista Stella McCartney (“A nova economia têxtil: Redesenhando o mundo da moda”), lançado no Fórum Econômico Mundial, faz uma proposta inédita e muito importante para as finanças sociais – não basta mudar os métodos de produzir roupa, usando, usando algodão orgânico, etc.

Precisamos reduzir a quantidade de roupa que é oferecida porque, nesta quantidade, por mais sustentável que seja o processo produtivo, é impossível que se alcance algo parecido com a sustentabilidade. Esse relatório foi patrocinado pela fundação C&A, pela H&M, Nike Inc. e outras empresas de fast fashion.

É muito importante que esta consciência chegue aos próprios líderes do setor. Infelizmente, no setor agroalimentar nós estamos muito longe disso. Não se trata de parar de produzir coisas, mas devemos ter em mente a qualidade daquilo que a economia oferece para a vida social e o uso que a sociedade vai fazer disso. Isso não depende apenas da consciência do consumidor.

Sobre inovação e grandes empresas

A segunda pergunta que devemos fazer é quem são os protagonistas dessa oferta? Para o Brasil, principalmente, essa é uma pergunta muito importante. Nosso país é caracterizado por uma extrema divisão. Os acadêmicos que estudam inovação não têm nada a ver com os acadêmicos que estudam pobreza e desigualdade. Isso gera um mundo no qual, quando penso em inovação, me vem a cabeça, a Embraer, Natura e outras grandes empresas. Inovação é, portanto, assunto de políticas para grandes empresas. E quando penso em pobreza, inovação está fora. Pobreza é salário mínimo, distribuição de renda, transferência de renda, etc. Claro que grandes empresas são importantes e é claro que políticas sociais são importantes. Mas se nós não conseguirmos juntar essas duas pontas, nós não seremos um país inovador.

Os Estados Unidos estão perdendo a sua condição de país inovador, exatamente pelo fato de a inovação estar cada vez mais concentrada. Há relatórios da McKinsey mostrando isso. No nosso país, isso é muito mais grave porque as comunidades periféricas estão distantes da inovação, não só por uma questão de educação genericamente falando, mas por questões fundamentais do nosso cotidiano, como a estupidez da guerra às drogas, a qual nós insistimos e corremos o risco de insistir ainda mais em função de processo político que estamos vivendo hoje até as eleições e com a discriminação dos territórios periféricos.

Uma das funções das mais importantes das finanças sociais – e isso já está acontecendo em algumas iniciativas – é que os seus atores consigam se ligar aos movimentos sociais das regiões periféricas que estão defendendo os direitos dessa população. Essas populações que estão produzindo manifestações culturais de uma criatividade fantástica como a Guerra do Passinho, saraus, batalhas de poesia e outras.

Isso precisa alcançar a inovação digital. Ela precisa ter como como protagonistas as populações pobres da periferia, chegar às meninas negras. Sem isso, nós não seremos um país inovador.

Juntando as pontas

E passando rapidamente pela terceira pergunta … como fica a questão dos custos? As grandes empresas têm projetos na Amazônia. O Brasil tem o compromisso de reflorestar 12 milhões de hectares e isso não tem como ser feito fora do setor privado. Mas todos nós, como um movimento social, precisamos influenciar os atores econômicos que ocupam os espaços rurais, mostrar que o grande trunfo do Brasil não está na produção de produtos envolvendo baixo teor de conhecimento e de inovação, aqueles que são rotineiramente oferecidos como commodities agrícolas. Claro que as commodities agricolas são importantes, mas é muito importante que haja conhecimentos universitários aliados aos conhecimentos das comunidades tradicionais e que vão permitir negócios de regeneração florestal dos quais precisamos muito. O Brasil é o país no mundo mais bem preparado para fazer regeneração florestal. Só que o ritmo dessa regeneração está muito, muito aquém do que poderia ser.

E uma das razões é exatamente a dificuldade para as elites econômicas compreenderem que as populações tradicionais têm muito a ensinar no que se refere à valorização da nossa biodiversidade e que esta pode ser uma oportunidade de negócios fantástica.

Isso não se aplica apenas à biodiversidade das florestas. Vale também para as cidades, que não podem continuar marcadas pelo apartheid territorial. Isso traz grandes oportunidades de negócios que podem valorizar os bens públicos, os bens comuns, a nossa capacidade de viver juntos. E não simplesmente prédios com energia solar, mas completamente isolados da vida social.

Sobre mensuração de impacto

Tem uma frase de William McDonough, no livro publicado em 2013, The Upcycle, que é muito interessante.. “A gente não pode começar um projeto pela verificação. Um projeto só pode começar por valores. Desses valores decorrem princípios. Dos princípios, decorrem os objetivos e, daí estratégias, táticas… no final, posso medir a partir dos valores.” A pergunta o que vai acontecer depois que meu produto for consumido é uma pergunta central.

Muito feliz de poder me dirigir a vocês que são protagonistas de um dos mais importantes movimentos sociais do nosso país e um movimento que procura mostrar que juntar atividades econômicas regidas pela racionalidade econômica e objetivos, valores úteis para a sociedade não é uma quadratura do círculo, mas sim um caminho para o futuro.

(*) Ricardo Abramovay é professor titular do Departamento de Economia da FEA e do Instituto de Relações Internacionais da USP, pesquisador do CNPq e coordenador do Projeto Temático FAPESP sobre Impactos Socioeconômicos das Mudanças Climáticas no Brasil. Autor de dez livros, incluindo Muito Além da Economia Verde, Planeta Sustentável, São Paulo, 2012.