Participantes da mesa de abertura do 11º Congresso GIFE (sentido horário): Neca Setubal, presidente do conselho de governança do GIFE e da Fundação Tide Setubal; Márcia Castro, chefe do Departamento de Saúde Global e População na Faculdade de Saúde Pública de Harvard; Rachel Maia, contabilista e empresária, CEO da Lacoste no Brasil; e Eliane Dias, ativista feminista, advogada e empresária.
  • “É preciso coragem para enfrentar, de forma colaborativa, a persistência da desigualdade, as pressões sobre o meio ambiente e os conflitos que ameaçam os fundamentos da coexistência cidadã e da vida democrática”, afirmou Neca Setubal, presidente do conselho de governança do GIFE, na mesa de abertura do 11o Congresso GIFE.
  •  Sob o impacto da persistência de desigualdades históricas, dos efeitos disruptivos das novas tecnologias, das pressões crescentes sobre o equilíbrio ambiental e da emergência de novos conflitos a ameaçar os fundamentos da coexistência cidadã e da vida democrática, a mesa de abertura do Congresso GIFE debateu os desafios que se impõem hoje para a sociedade brasileira.

Com o painel de abertura Fronteiras da Ação Coletiva: Desafios e Inspirações para o Brasil e o Mundo, realizado no dia 3 de agosto, teve início a Semana do Investimento Social, parte do 11o Congresso GIFE , principal encontro sobre investimento social no Brasil. A proposta do primeiro debate foi refletir sobre os desafios mais prementes do momento e como tirar inspiração nesse cenário para a construção de um mundo mais justo, sustentável e feliz para todos. O Congresso GIFE tem como missão proporcionar reflexão, aprendizado, trocas e promover a ação colaborativa para fortalecer a ação cidadã e a produção de bem público.

O painel inicial foi mediado pela socióloga, educadora e criadora da Fundação Tide Setubal, Neca Setubal, que é também presidente do conselho de governança do GIFE. Participaram a cientista e acadêmica Márcia Castro, chefe do Departamento de Saúde Global e População na Faculdade de Saúde Pública de Harvard e co-diretora do programa de estudos de Brasil no Centro David Rockefeller; a ativista feminista, advogada e empresária Eliane Dias, produtora do Racionais MC´s; e Rachel Maia, contabilista e empresária, atualmente CEO da Lacoste no Brasil.

Para Neca Setubal, moderadora, “o momento é desafiador mas também representa uma oportunidade uma vez que questões antigas como a persistência da desigualdade, as pressões sobre o meio ambiente e os conflitos que ameaçam os fundamentos da coexistência cidadã e da vida democrática estão na pauta. É preciso coragem para enfrentá-las de forma colaborativa”.

Para enfrentar as desigualdades, Neca Setubal considera fundamental que se pense de forma sistêmica. “A sociedade civil precisa se articular também com as políticas públicas, com o judiciário, com o congresso, para que o impacto das ações seja maior”, afirmou. Um bom exemplo disso, na visão dela, foi o Fundeb, que teve ampla articulação e foi uma vitória da sociedade. Segundo Neca, territórios e lideranças devem ser cada vez mais incluídos nesta articulação, para que “de fato se identifique quem são os mais vulnerários e como atendê-los”.

As fronteiras do lugar de fala de cada um

A primeira questão colocada por Neca Setubal aos participantes levantou o lugar de fala de cada um, as condições sociais em que se posicionam, o caráter coletivo que regeu suas oportunidades de vida. Mulher negra da periferia, filha de mãe solteira, Eliane Dias fez uma escolha: não ser frágil, não ser fraca. Ajuda do governo? “Não chega”. Por isso, ela agradece e acredita na sociedade civil, “gente que busca soluções para os problemas”.


“A meritocracia não vale na periferia. É preciso uma revolução pelo estudo, pela união, resistência e competência.” | Eliane Dias, ativista feminista, advogada e empresária


 

Eliane acredita também na educação. “A meritocracia não vale na periferia. É preciso uma revolução pelo estudo, pela união, resistência e competência. Eu fiz MBA na FGV, faço parte de 0,2% da população. Mas há grandes parceiros que oferecem bolsa, apadrinhamento, e esta é a diferença. A educação me transformou. Este é o lugar de fala. Acredito na minha capacidade e na capacidade dos meus, acredito no meu povo preto, pobre e periférico”.

Para Márcia Castro, que mora e trabalha em Boston, nos EUA, “ninguém faz nada sozinho”. “A caminhada é uma conquista e a cada conquista agradeço a todos que me ajudam sempre a buscar o melhor”, afirma, destacando o valor do coletivo. Estudante de escola pública no Rio de Janeiro, ela sempre considerou importante saber ouvir para entender; e entender que a gente nunca deixa de ser aluno, de aprender. Ela nunca se imaginou fazendo PhD em Princeton, acha que chegar ao topo é louvável, desde que se suba um degrau de cada vez. Outro ponto relevante, na opinião dela, é jamais esquecer as raízes. “Foi minha família que me deu os valores e a minha terra é o meu foco. Há anos que, no meu trabalho com saúde pública, o foco é o Brasil. Gerar conhecimento não basta, é preciso treinar a nova geração, por isso reforço a ida de estudantes brasileiros para Harvard e vice-versa.” Além de tudo, Márcia diz que é preciso ser um pouco Jedi – “as dificuldades me tornaram resiliente”. Ela tem realizado pesquisas na Amazônia desde 1999, sempre compartilhando os resultados com todas as pessoas e autoridades que ajudam no processo


 

“Precisamos entender como dar oportunidades para que as pessoas possam mostrar o seu valor. Onde não tem alimentação, transporte, saúde, precisa de arroz e feijão. É preciso levar cestas básicas, instigar a educação e dar oportunidades depois que a fome passar.” | Rachel Maia, contabilista, empresária, CEO da Lacoste do Brasil.


 

Mãe independente, com dois filhos, de família humilde, estudante de escola pública, Rachel Maia – que já foi capa da Forbes, CFO e responsável pela chegada da Tiffany & Co. no Brasil, entre outros trabalhos, e hoje é CEO da Lacoste – considera que os jovens precisam de oportunidades. “Precisamos entender como dar oportunidades para que as pessoas possam mostrar o seu valor”, afirma. “Onde não tem alimentação, transporte, saúde, precisa de arroz e feijão. Por isso, eu levo cestas básicas e instigo a educação. É preciso dar oportunidades depois que a fome passar”, destaca.

Catequista de crisma, Rachel considera que a educação que recebeu lhe deu uma visão expansiva, no sentido de ouvir e não julgar. Quando as pessoas estão privadas do básico – educação, comida – é difícil ouvir. “Ouvir e julgar tem um sentido diferente para quem tem a barriga vazia. Temos que julgar menos e praticar mais”, afirma.

E como ser mulher, preta, capa da Forbes? “Os homens me perguntavam. E eu respondia que sendo mulher, preta, competente, trazendo habilidades de forma a que não possam ser questionadas. Porque seremos duas, três vezes questionadas. É ter resiliência”, diz Rachel. Ela ressalta porém que há muitos gestores abertos a aprender como incluir, a como fazer tudo sem ser impositivo e sim inclusivo.

Desafios e inspirações para a sociedade brasileira

Sob o impacto da persistência de desigualdades históricas, dos efeitos disruptivos das novas tecnologias, das pressões crescentes sobre o equilíbrio ambiental e da emergência de novos conflitos a ameaçar os fundamentos da coexistência cidadã e da vida democrática, quais os desafios que se impõem hoje para a sociedade brasileira?


“Um dos desafios hoje é a polarização que divide a sociedade, que traz um retrocesso de décadas, comprometendo o diálogo e a solidariedade, contribuindo também para a negação da ciência.” | Márcia Castro, cientista e acadêmica.


 

Para Márcia Castro, um dos desafios é “a polarização que divide a sociedade, que traz um retrocesso de décadas, comprometendo o diálogo e a solidariedade, contribuindo também para a negação da ciência”. Outro, o fato de o Brasil ser marcado pela desigualdade estrutural, o que torna a sociedade justa e igualitária muito distante. “Na minha área, por exemplo, há muitos cientistas sérios, comprometidos em ajudar durante esta crise da pandemia. Outros, contudo, tentam tirar vantagem para se promover. E há ainda aqueles que contribuem para a negação da ciência e comprometem o trabalho dos que são sérios. Temos que estar preparados para não desistir”, diz Márcia.

Eliane Dias considera que nunca houve, no mundo afro, um momento fácil, um deixar de persistir, de lutar. “Na pandemia, continuamos fazendo o que sempre fizemos. Ônibus cheios, mães deixando filhos sozinhos. Vamos seguir fazendo isso. É necessário que os invisíveis sejam acolhidos. Que a delegacia da mulher funcione, que o conselho tutelar funcione, que as pessoas tenham emprego. Para vencer os desafios, aposto nas ONGs, nos profissionais de saúde, nas empresas que recebem jovens aprendizes e em uma pequena parcela de políticos”, afirma Eliane. Já para Rachel, a aposta principal para superar os desafios está na empregabilidade: “A empregabilidade garante o orgulho de ir ao supermercado e comprar o que você precisa”.


Desde 2016 o sistema político se agravou muito e a democracia está sendo posta em cheque. A hora é de valorizar o que dá certo. A ação do Estado deve ser complementada por parcerias, algo além das políticas públicas.” | Márcia Castro, cientista e acadêmica.


E onde buscar inspiração para superar os desafios? Para Márcia Castro, a renovação política pode ser um caminho. “Está havendo uma certa renovação, o que trouxe jovens sérios para a política”, considera. Outra força, na opinião dela, é a mobilização social. Foi o movimento da sociedade que fez da saúde um direito, com o SUS. Não é perfeito, mas é essencial. É preciso mobilização também para a política. Segundo Márcia, “desde 2016 o sistema político se agravou muito e a democracia está sendo posta em cheque. A hora é de valorizar o que dá certo. A ação do Estado deve ser complementada por parcerias, algo além das políticas públicas, para que seja possível valorizá-las”.

Eliane considera que a prioridade é a resistência. “Temos que manter o que temos. Não perder o SUS, o direito de votar, o sistema de cotas para negros, etc. Voltamos em 2020 ao mapa da fome, o que é horrível. As pessoas precisam voltar a sonhar”.

Segundo Neca Setubal, o nível de pobreza e vulnerabilidade do país, embora conhecido, “ficou mais evidente durante a pandemia, assustando até organizações que lidam com a realidade da periferia, como a Redes da Maré, no Rio de Janeiro”. Por isso, ela considera muito importante fortalecer movimentos da sociedade civil, as novas lideranças, práticas do empresariado brasileiro como o recente posicionamento em prol do meio ambiente, movimentos pelo Fundeb e FIES, e outros. “Nesse momento de pandemia, as organizações comunitárias fizeram muito a diferença em regiões como Paraisópolis, Maré, são referências de mobilização”, destaca.

Sobre a pandemia, Márcia Castro considera que “expôs o melhor e o pior do ser humano”. O importante agora, avalia, é que o bem prevaleça, que o respeito à vida seja uma regra, para a conquista de uma sociedade mais justa. Rachel Mais, por sua vez, acredita que cada pequena ação, neste momento de muita carência, pode ajudar para que, além do atendimento às necessidades básicas, novas oportunidades possam surgir.


“É muito importante que todos participem da política, para pensar um bem maior.” | Eliane Dias, ativista feminista, advogada e empresária


 

Pensando no futuro, Eliane Dias acha muito importante que todos participem da política, para pensar um bem maior. “Hoje a política não tem sido para todos. Está muito agressiva, opressora. Todos têm que lutar juntos para manter o SUS, o regime de cotas, a ciência séria, a imprensa séria, a participação ativa das pessoas com mais de 60 anos e outros temas prioritários. É um momento também em que precisamos ter fé, rezar muito”, diz Eliane.

Ao encerrar o encontro, Neca Setubal destacou que é preciso que, todos juntos, ocupem espaços. “É preciso, com base na capacidade de ação coletiva, buscar o diálogo com pessoas em diferentes lugares. Vivemos tempos dificílimos, com o apagão das políticas públicas, mas quando vejo pessoas diferentes se unirem em torno da renda básica cidadã, jornais conservadores falando de capitalismo consciente, de uma economia que coloque as pessoas no centro, fico com esperança. As oportunidades de evolução dependem muito das empresas, da sociedade civil, das organizações, fundações, institutos, de representantes do investimento social privado, para que seja possível chegar a uma economia de bem-estar, com redução da desigualdade. Há muito por que lutar.”


“Vivemos tempos dificílimos, com o apagão das políticas públicas, mas quando vejo pessoas diferentes se unirem em torno da renda básica cidadã, jornais conservadores falando de capitalismo consciente, de uma economia que coloque as pessoas no centro, fico com esperança.” | Neca Setubal, presidente do conselho de governança do GIFE.


 

O 11o Congresso GIFE é um momento marco na construção e renovação do diálogo do Investimento Social e da Filantropia entre as organizações que o compõem e com outros setores. Nesta edição, que coincide com a celebração dos 25 anos do GIFE e que é marcada pelas enormes consequências, no Brasil e no mundo, da pandemia provocada pelo coronavírus, o Congresso se ampliou. Começou com a Semana do Investimento Social, entre 3 a 7 de agosto e segue ao longo dos meses seguintes em uma programação intensa de conferências, diálogos e trocas online oferecendo a seus participantes uma jornada vibrante de colaboração e intercâmbio no rumo da superação dos desafios que nos cercam. Por fim, a realização do encontro presencial do Congresso, nos dias 24, 25 e 26 de março de 2021, será o momento de síntese e panorama dos acúmulos dessa jornada.

Trilho Diálogos e Intercâmbios Temáticos

O trilho do 11o Congresso GIFE conduzirá a uma jornada conjunta de reflexão que buscará dialogar com o marco dos 25 anos do GIFE e as fronteiras trazidas pelos desafios potencializados pela emergência da pandemia da Covid-19, apontando assim caminhos para uma nova etapa para a filantropia e o investimento social privado brasileiros.

Para isso, será norteado pela conexão com três eixos fundamentais, estruturando as dimensões complementares para esse diálogo:

  • a visão e desafios de um setor expandido e diversificado, com a vitalidade de novos atores e perfis, temas e estratégias múltiplas de atuação;
  • a promoção de um setor mais colaborativo entre si e com os demais atores da agenda pública, aprofundando os modos de ação coletiva e novas arquiteturas de investimento social;
  • a renovação e aprofundamento da conexão com as agendas e desafios públicos contemporâneos no Brasil e no mundo

A partir deles, o trilho do Congresso se propõe a reunir e consolidar visões de futuro para a ação do campo, sintetizando diretrizes para a continuidade da sua expansão e aprimoramento cotidianos e o aprofundamento das suas contribuições para a construção pública no país, no horizonte da superação dos desafios trazidos pela pandemia e dos “próximos 25 anos” para o setor e para o GIFE.

Para saber mais, acesse o site do congresso. A programação é online e gratuita.