Rede Temática de Negócios de Impacto do GIFE debate diversidade racial

O 9º encontro da Rede Temática de Negócios de Impacto do GIFE, realizado dia 23 de maio com o tema Diversidade no Campo dos Negócios de Impacto Social, buscou estimular diálogos criativos e propositivos com representantes de fundações e institutos privados para sensibilizá-los a promover a cultura da diversidade racial, tanto dentro das organizações, quanto em negócios de impacto nos quais investem e atuam.

A partir da metodologia “Conversando a gente se aprende”, desenvolvida pela Feira Preta e Mandacaru, a Rede Temática (RT) propôs aos participantes uma reflexão sobre como relacionar-se com negras e negros, mulheres e moradoras e moradores da periferia, indo além da lógica do público-beneficiário, pensando na transversalidade do tema nas diversas áreas e estratégias das organizações.

Lançada em 2016, a RT é coordenada por Fábio Deboni (Instituto Sabin), Célia Cruz (Instituto de Cidadania Empresarial-ICE) e Fernando Campos (Fundação Grupo Boticário). O encontro foi realizado no Impact Hub, em São Paulo, e reuniu mais de 40 pessoas de fundações e institutos privados interessadas em discutir a cultura da diversidade racial e práticas mais inclusivas no ecossistema do investimento social privado e negócios de impacto social.

As dinâmicas foram conduzidas por Adriana Barbosa, fundadora da Feira Preta, o maior evento de empreendedorismo negro da América Latina, e Mozana Amorim, da Mandacaru Consultoria. A metodologia “Conversando a gente se aprende” propõe uma abordagem humana centrada na qualidade das relações, autoliderança, corresponsabilidade e em ações práticas. A metodologia já foi utilizada em empresas como Google Brasil, Netflix e Facebook. A proposta é levar para os espaços corporativos a transversalidade da questão da diversidade, sobretudo a racial.

Os participantes do encontro vivenciaram três momentos: uma aula de História de Danielle Almeida, cientista da educação e colaboradora da Feira Preta; depois, Adriana Barbosa e Adriano Santos, também da Feira Preta, fizeram uma apresentação  da cronologia do Investimento Social Privado (ISP) por décadas; por fim, Mozana Amorim, da Mandacaru Consultoria, convidou os presentes a participar do Proaction Café, metodologia de diálogo, com duas rodadas de perguntas.


Entre as 500 maiores empresas do Brasil, 80% afirmam não ter medidas para incentivar a presença de negros na equipe.


 

Uma aula de história

Segundo dados do IBGE, dos 207,1 milhões de brasileiros que compõem a população hoje, 56% são negros; e até 2020, os negros representarão 8 entre cada 10 brasileiros. Apesar de já serem maioria, a inserção e participação dos negros em espaços diversos apresenta níveis muito baixos, principalmente em espaços de tomada de decisão. Um levantamento do Instituto Ethos aponta que, dentre as 500 maiores empresas do Brasil, 80% afirmam não ter medidas para incentivar a presença de negros na equipe. Se forem consideradas posições de liderança, o número sobe para 85%. A última edição do Censo GIFE destacou que 60% dos 116 respondentes afirmaram possuir apenas conselheiros brancos, 14% possuem conselheiros pardos e 3% conselheiros negros. A questão racial é um dos mais complexos desafios na sociedade brasileira.

A história mostra, contudo, que as questões que estruturam a pobreza são racistas. Para Danielle Almeida, cientista da educação e colaboradora da Feira Preta, as razões que justificam a escravidão no Brasil e na América Latina são frágeis e manipuladas. “Os africanos foram sequestrados dos seus territórios porque tinham a maior tecnologia daquele período. Eram uma mão de obra extremamente qualificada. O continente africano é marcado por um desenvolvimento técnico e científico”, explica Danielle Almeida.

No mapa mundi, ela mostrou o eixo Egito, Sudão e Etiópia, onde aconteceu a primeira revolução tecnológica do mundo, há 18 mil anos, que foi a revolução agrícola. No extremo sul da África está a mina de ferro mais antiga do mundo, com 40 mil anos, o que demonstra que os povos africanos já conheciam a mineração no ferro.

“Tudo isso foi fundamental para a produção de cana-de-açúcar no nordeste e, depois, para a mineração em Minas Gerais. Foi um processo que durou quase 400 anos. Com a abolição, as senzalas foram abertas e os ex-escravos que não foram incorporados a um sistema de trabalho remunerado passaram a ficar nas ruas. Assim surgiram a população de rua no Brasil e as favelas. Ninguém vai empregar ex-escravo. Com a chegada dos europeus, ocorre a marginalização total da população negra. Sem trabalho, sem recurso, sem poder frequentar a escola, a pobreza já está construída. Não é à toa que 70,8% da população pobre no Brasil é negra. Se não entendermos esse histórico, não conseguiremos olhar a necessidade desse grupo. E essa necessidade é fundamental. Não dá para impactar socialmente essa sociedade que é tão injusta sem pensar na questão de cor no Brasil. Isso é história, não é especulação, tudo isso está provado”, afirma Danielle.

Investimento Social Privado

Na disputa pelos recursos do Investimento Social Privado (ISP), alguns marcos ajudam a entender a evolução das políticas públicas, da transição da subsistência para uma agenda de direitos humanos atrelada à questão da violência.

Nos anos 1980, o foco foi o combate à fome e à miséria, com a presença marcante do sociólogo Betinho e a participação da filantropia. “Na década de 1990, o tema Direitos Humanos ganha força. As organizações saem um pouco da filantropia, da questão da comida só pela subsistência, e começam ampliar a agenda e falar de justiça social, mas não ainda de justiça racial. No início dos anos 2000, começa-se a falar de organizações sociais em territórios que trazem uma agenda de educação e cultura, com oficinas para jovens, que se profissionalizam e formam grupos culturais”, afirma Adriana Barbosa.

“Nos anos 2000, os problemas sociais permanecem e a ideia de racismo ganha mais força. Os movimentos também se reorganizam e as pessoas começam a lutar pelo direito de poder dizer que é preto ou pardo. Surge a ideia de negócio social ou negócio de impacto, negócio socioambiental, negócio inclusivo, negócios de base comunitária, com as organizações Artemisia e Ashoka que se instalam no Brasil ”,  completa Adriano Santos.


A população negra hoje tem autoestima e quer ter seus próprios sistemas, seus próprios designers, suas próprias tecnologias, não cabe mais em uma caixinha de público beneficiário.


 

Adriana Barbosa comenta que em 2010, as agendas começam a mudar. A população negra ganha perspectivas econômicas: são estabelecidos o sistema de cotas nas universidades, as políticas publicas de reparação, o estatuto de igualdade racial. A população negra frequenta a universidade, forma redes e surgem muitos coletivos ligados à intelectualidade e cultura. Depois do lançamento da Revista Raça, as indústrias trazem para o Brasil produtos segmentados e criam campanhas de comunicação. A autoestima vai para o capital e para o consumo. “Aí ocorre a guinada. Em 2019, a população negra com autoestima lá em cima começa a se autodeclarar nas pesquisas. Pelo IBGE, já somos maioria e não é porque nasceram mais negros. Houve uma transição cultural de posicionamento claro da raça. O exemplo clássico é as mulheres negras assumirem os cabelos. O debate da diversidade está chegando forte nas áreas de recursos humanos das empresas”, comenta Adriana.

“A população negra não se vê mais como beneficiária. É preciso entender todo esse processo que aconteceu, as histórias que nos trouxeram até aqui. A população negra hoje tem autoestima e quer ter seus próprios sistemas, seus próprios designers, suas próprias tecnologias, não cabe mais em uma caixinha de público beneficiário. Ela quer ser protagonista, dar as cartas. Ela não quer ter um intermediário. E a agenda de investimento social privado precisa combinar com esse novo público. O jovem de hoje já se declara negro e se posiciona. Se há um tempo falávamos sobre violência, o jovem negro de hoje quer falar sobre saúde mental e bem-estar. Precisamos nos unir para criar estratégias para transcender a questão da sobrevivência”, concluiu Adriana.

Diálogo que constrói

O terceiro momento do encontro ficou por conta de Mozana Amorim, da Mandacaru Consultoria, e a metodologia Proaction Café. Os participantes se dividiram em grupos para debater duas questões. A metodologia se caracteriza por garantir que todos os participantes tenham seus espaços de fala, bem como os de escuta. Foram duas rodadas de perguntas. Na primeira, os grupos deveriam discutir o que falta para termos uma compreensão completa a respeito de diversidade racial e inclusão no ecossistema de negócios de impacto social. Já na segunda, deveriam falar sobre que passos e ações realizarão no nível pessoal, no trabalho e no ecossistema que integram. No final, cada grupo compartilhou com os demais as reflexões levantadas.

Principais conclusões dos grupos

  • Estar aberto ao diálogo – o que significa baixar a guarda e conversar sobre questões difíceis.
  • Entender a diferença entre um ambiente diverso e um ambiente realmente inclusivo; a importância de um sistema de cotas para mudar a lógica das contratações; necessidade de mudar a visão do investimento de curto para longo prazo; reconhecer que a desigualdade é ruim para todos.
  • Perceber os vieses inconscientes como um primeiro passo para desenvolver empatia.
  • Apoiar empoderamento de jovens e novas gerações.
  • Ampliar conhecimento sobre dados históricos.
  • Necessidade de empresas terem coragem de olhar para suas estruturas internas.

E o que pode ser feito?

  • Prestar mais atenção sobre onde estão as pessoas negras nos ambientes – seja escola, faculdade, restaurante, trabalho.
  • Desenvolver programas de aprendizagem para jovens e empreendedores, entre outras medidas.
  • Questionar instituições com as quais irá firmar parcerias se só tiverem funcionários brancos.
  • Insistir na conversa, mesmo com pessoas que pensam diferente e ainda não estão sensibilizadas para o tema.
  • Ceder o lugar de poder.
  • Aproximação de redes já existentes.
  • Passar a consumir produtos afro.

“A população negra somos todos nós. Não é o outro. São conversas duras, espinhosas, mas devemos olhar para dentro de nós, para nos fortalecer e conseguir gerar o impacto que queremos”, completou Adriana.