Transformação econômica decorrente do empreendedorismo negro já é realidade

Se não for por uma questão de valor ou de princípio, que seja por inteligência. Incentivar o empreendedorismo, oferecer microcrédito ou desenvolver produtos e serviços com olhar específico para população negra é aproveitar um mercado de R$ 1,7 trilhão.

Para debater a inclusão da população negra no universo dos negócios, de quem empreende a quem consome, a FGV EAESP convidou um pool de negócios pretos – Feira Preta, Afrobusiness, Diáspora.Black e Movimento Black Money – para realizar o Fórum Raça e Mercado – Uma transformação econômica. O encontro reuniu empreendedores, investidores e especialistas de diferentes segmentos da economia em um ambiente de diálogo e troca, em São Paulo, no dia 13 de maio.

A iniciativa surgiu após encontros entre a Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV – EAESP) com empreendimentos pretos em que foi identificada a urgência em articular os principais atores econômicos em torno do ecossistema das ideias e negócios pretos, aprofundando as reflexões estruturais sobre o tema, além de criar um observatório que mantenha uma base de dados contínua sobre o contexto, a evolução e os desafios da inclusão da população negra no universo dos negócios, seja ela empresária ou consumidora.

Professor Edgard Barki, da FGV EAESP: “O objetivo do Fórum foi dar início a uma proposta mais ampla que inclui a realização de encontros mensais, publicações, desenvolvimento de conteúdos audiovisuais diversos e a criação do observatório de dados” (foto divulgação)

“O objetivo do Fórum foi dar início a uma proposta mais ampla que inclui a realização de encontros mensais, publicações, desenvolvimento de conteúdos audiovisuais diversos e a criação do observatório de dados, entre outras atividades que darão conta de fomentar o tema Empreendedorismo Negro, com diferentes e importantes atores do país que formam o ecossistema”, explica o professor Edgard Barki, da FGV EAESP.

Os painéis abordaram os temas: Contexto Histórico; Decodificando os Dados do Mercado: Quem está empreendendo e quem está consumindo; Os/As atores/atrizes do Campo e as dores e os amores do empreendedorismo negro brasileiro; Políticas Públicas e Investimento Público; e Investimento Privado. Entre os participantes, estavam, além dos empreendedores, Veronica Cook-Euell, gerente do Programa de Diversidade de Fornecedores da Kent State University; Suzana Mattos, do Sebrae Rio de Janeiro; Luana Ozmela, do BID; Selma Moreira, do Fundo Baobá; Jessica Rios, do Fundo Vox; Jefferson Mariano, analista socioeconômico do IBGE; Marina Bautista, responsável pela área de Empreendedorismo do Banco Itaú; Marcelo Paixão, pesquisador de afroempreendedorismo na Universidade do Texas; Renato Meirelles, do Locomotiva Instituto de Pesquisa; Laura Zellmeister, do JP Morgan; Patrícia Hellen, secretária de Desenvolvimento Econômico do Estado de SP; e o professor Nelson Marconi, da FGV EAESP.


“A população negra não atingiu maioria só porque nasceram mais negros. Esse fenômeno tem a ver com o processo de autodeclaração que aconteceu nos últimos 20 anos.”

Adriana Barbosa, Feira Preta  


 

“Já somos maioria”

Segundo dados do IBGE, dos 207,1 milhões de brasileiros que compõem a população hoje, 56% são negros; e até 2020, os negros representarão 8 entre cada 10 brasileiros. Em 2017, em meio à crise econômica que atingiu o país, a população negra movimentou R$ 1,7 trilhão, o que equivale a 24% do PIB brasileiro e representa crescimento de 7 pontos percentuais, comparado ao ano anterior.

“O crescimento da população negra é um dado relevante, bem como o papel do movimento negro que vem resgatando a autoestima da população negra. O censo de 2010 é emblemático porque conseguimos avançar nas questões de caráter econômico. Mas não há uma relação com a política de cotas. São processos distintos. O crescimento da população negra está levando o IBGE a repensar algumas categorias, principalmente empreendedorismo negro e as relações de consumo”, comentou Jefferson Mariano, analista socioeconômico do IBGE, que participou da mesa que tratou do tema Decodificando os Dados do Mercado.

Para Adriana Barbosa, fundadora da Feira Preta e mediadora dessa mesa, a transformação aconteceu de fato quando a população negra começou a se autodeclarar. “Nós não poderíamos falar hoje de mercado nem de diversidade nas empresas se não fosse pelas pesquisas. A população negra não atingiu esse lugar de maioria só porque nasceram mais negros. Esse fenômeno tem a ver com o processo de autodeclaração que aconteceu nos últimos 20 anos. Hoje, o jovem negro já nasce negro, diferentemente da minha geração que tinha que passar pelo processo de embranquecimento e mascarar uma situação. Hoje isso representa muito para eles. Já somos maioria e isso pode impactar todas as políticas, econômicas e culturais”, afirmou Adriana.

Em 2018, o Banco Itaú realizou um estudo qualitativo sobre Empreendedorismo Negro com o objetivo de compreender as motivações, obstáculos e a gestão financeira dos micro e pequenos negócios. “Para os microempreendedores negros, o significado do trabalho futuro é ter visibilidade (mostrar a tradição afro), crescer empregando pessoas e gerar renda e inclusão. A questão do racismo pontuou todos os ângulos do estudo. Existe a percepção de que de que o mercado financeiro discrimina o cliente e dá mais oportunidades para empreendedores brancos do que para os negros. As barreiras existem com todo o setor financeiro. O relacionamento não existe. Muitas vezes, o empreendedor negro consegue contratar um crédito, mas não existe um relacionamento com o gerente, com o banco. Uma das empreendedoras ressaltou que a identificação foi outra quando ela se deparou com uma gerente negra. Fez toda a diferença para ela. Por outro lado, fez toda a diferença para a gerente que sofria discriminação por parte de alguns clientes. A identificação ajudou a criar um relacionamento entre elas”, contou Marina Bautista, responsável pela área de Empreendedorismo do Banco Itaú.


“O estudo mostrou também que a desigualdade acontece desde o início do relacionamento. A maioria dos empreendedores negros é pobre e isso determina as dificuldades financeiras na origem.”

Marina Bautista, Banco Itaú


 

O estudo mostrou também que a desigualdade acontece desde o início do relacionamento. “A maioria dos empreendedores negros é pobre e isso determina as dificuldades financeiras na origem. O empreendedor negro dificilmente começará o seu negócio com uma reserva financeira e, assim, é inevitável que o negócio comece desestruturado. Existem diferenças que precisam ser tratadas. Entre as recomendações feitas, antes de tudo, é preciso incluir, quebrar as barreiras e acolher. Não apenas na perspectiva do cliente, mas sobretudo dentro da organização. Para desenvolver algum produto financeiro para o cliente negro, tem que ser uma pessoa negra que vai entender as particularidades do cliente”, apontou Marina.

Ações afirmativas

Estudioso do tema desigualdade social e racial no Brasil, o professor Marcelo Paixão é autor de uma pesquisa realizada por encomenda do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em 2012/2013, que analisou o acesso ao crédito produtivo pelos microempreendedores afrodescendentes. Atualmente, é pesquisador de afroempreendedorismo na Universidade do Texas e, por essa razão, participou do encontro via internet.


“A população negra tem enorme dificuldade em superar o estágio da mera subsistência imediata e dar um salto para dar à sua atividade um caráter empresarial.”

Marcelo Paixão, pesquisador de afroempreendedorismo na Universidade do Texas


 

Para o professor, o problema do empreendedorismo está relacionado a um paradoxo. Por um lado, o empreendedorismo negro foi tolhido por um sistema institucional muito pouco amigável à formalização de atividades econômicas. “O modelo cartorial brasileiro teve um papel negativo em várias áreas, mas especialmente para a população negra. Porém, o empreendedorismo negro no Brasil é uma marca registrada da presença da população negra no mercado de trabalho no período republicano. Como o mercado formal de trabalho estava fechado à população negra, ela se volta ao empreendedorismo porque de outro modo não sobreviveria. Esse acesso se dá por funções de baixo perfil, com baixa produtividade e características artesanais ou semi-artesanais. A população negra tem, portanto, enorme dificuldade em superar o estágio da mera subsistência imediata e dar um salto para dar à sua atividade um caráter empresarial”, comenta o professor Paixão.

Discutidas na última década, as ações afirmativas representaram uma vitória moral para a população negra brasileira. “Eu ousaria afirmar que agora é possível vislumbrar um novo passo: a incorporação da agenda do movimento negro à agenda do desenvolvimento econômico, na qual a questão do empreendedorismo se coloca como uma questão central. As transformações recentes do mercado de trabalho têm uma dimensão estratégica. A questão que se coloca agora é como vamos sair de uma economia de subsistência para uma economia familiar, com uma certa dose de formalização”, acrescentou o professor Paixão.

Qual é a cor dessa classe C?

Foi a pergunta que a mediadora dirigiu a Renato Meirelles, do Locomotiva Instituto de Pesquisa, uma das primeiras organizações preocupadas em verbalizar ou dar visibilidade à população negra e emergente do ponto de vista do consumo.

Renato Meirelles, do Locomotiva Instituto de Pesquisa: “Sou branco, tenho 41 anos, curso superior e moro em São Paulo. Ganho 27% a mais do que um homem negro, 41 anos, com curso superior e que mora em São Paulo” (foto divulgação)

“Sou branco, tenho 41 anos, curso superior e moro em São Paulo. Ganho 27% a mais do que um homem negro, 41 anos, com curso superior e que mora em São Paulo. E ganho 71% a mais do que uma mulher negra, 41 anos, com curso superior e que mora em São Paulo. Se olharmos todas as variáveis, o discurso de que não existe racismo no Brasil não para em pé. A meritocracia tem um grande limitador porque só é viável quando todos partem do mesmo lugar. Esse é um desafio constante quando pensamos na questão racial”, explicou Renato.

Os negros e pardos representam um mercado consumidor de R$ 1,7 trilhão. Com esse valor, eles estariam no G20. “Pode parecer um detalhe, mas quando meus clientes da iniciativa privada me perguntam sobre a importância da diversidade e da igualdade, tento usar argumentos civilizatórios. Quando não são suficientes para convencê-los eu digo: meu amigo, você está rasgando R$ 1,7 trilhão”, comenta Renato.

O fundador da Locomotiva explicou que, há 10 anos, 45% da classe C se identificavam como negros. “Uma rede de supermercados queria fazer uma campanha publicitária para classe C. Eu recomendei que contratassem negros para fazer a comunicação e que os negros tinham que ser protagonistas. Hoje 59% da classe C se identificam como negros”, afirma.


“Não existe condição de lidar de forma definitiva com as consequências da desigualdade racial no Brasil sem resolver o problema da igualdade de oportunidades.”

Renato Meirelles, do Locomotiva


 

Outro dado significativo é a soma de empreendedores negros (empregadores e autônomos), que atinge 14 milhões. “Só que o empreendedor negro ganha a metade do que o empreendedor branco. Faço essas provocações, porque se não for por uma questão de valor ou de princípio, que seja por inteligência. Olhar para população negra, incentivar o empreendedorismo, oferecer microcrédito ou desenvolver produtos e serviços com olhar específico para população negra, é aproveitar um mercado de R$1,7 trilhão. Nas agências de publicidade da Bahia, que é um mercado muito forte, trabalham 23% de negros; em São Paulo, os negros não chegam a 15%. No departamento de criação das agências de São Paulo, os negros não chegam a 9%. Não existe condição de lidar de forma definitiva com as consequências da desigualdade racial no Brasil sem resolver o problema da igualdade de oportunidades. Como fazer para conquistar esse mercado de R$ 1,7 trilhão? É simples: contratar negros. Porque não sou eu, branco, que vou saber fazer. Não tem a ver com as melhores intenções, mas com a vivência e a realidade”, explicou Renato.

O exercício de decodificar os números também é um exercício de se colocar no lugar das outras pessoas. Também é um exercício de empatia, não se calar em um país onde 71% declaram ter visto um caso de discriminação racial no último ano. Só que apenas 9% dos brancos afirmam que já tiveram uma atitude racista. “A invisibilidade que se dá na questão racial é bem significativa, porque apesar dos preconceitos que existem, eu encontro mulheres em espaços de poder. Mas não encontro negros em espaços de poder. Enquanto os negros não estiverem ocupando esses espaços de poder, essa questão não será realmente definida”, conclui.