Os desafios do empreendedorismo negro após a Covid-19

Edgard Barki (FGVCenn), professor Noel Carvalho (Unicamp), Adriana Barbosa (Feira Preta) e Samuel de Paula Gomes (Huia), participantes da segunda edição do evento Raça e Mercado.

Vítima dos piores indicadores sociais e de saúde, a população negra é a mais atingida pela Covid-19, o que exige um olhar profundo de maior reflexão sobre os números. Afinal, o que mudou nos 132 anos após a abolição da escravatura no Brasil?

Ressignificação, reinvenção e retomada foram as abordagens dos três painéis da segunda edição do Raça e Mercado, evento online realizado no dia 13 de maio que discutiu, entre outros temas, os impactos do coronavírus na população negra e os desafios e oportunidades do empreendedorismo negro neste período. A iniciativa  teve o objetivo de reforçar o diálogo entre os diversos atores deste ecossistema e foi coliderada por Afrobusiness, Diáspora Black, Preta Hub, Feira Preta e FGVCenn (Centro de Empreendedorismo e Novos Negócios da FGV EAESP).

O objetivo do primeiro painel, Ressignificação, foi retomar o potencial das tecnologias, redefinindo o lugar da população negra no mercado e como protagonista da inovação. Contou com os palestrantes: Noel Carvalho (Professor da Unicamp) e Carlos Machado (mestre em História Social pela Universidade de São Paulo – USP).

Segundo o professor do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação da Unicamp, Noel Carvalho, a ausência da representação da população negra começou a mudar na década de 1990. “A Universidade acaba pautando esse tema, no campo mais amplo e acadêmico e, a partir de pesquisas acadêmicas e de uma reflexão qualificada, a questão do negro é colocada para se pensar o cinema brasileiro, por exemplo”, destacou Noel. A partir das representações étnico-raciais, as políticas públicas de ações afirmativas – como o maior acesso dos negros às universidades – e o surgimento de uma classe média negra influenciaram a reflexão e aprofundamento da pauta racial nas universidades e no cinema.

As pesquisas quantitativas realizadas pelo coletivo GEMAA – UERJ (http://gemaa.iesp.uerj.br/artigos/) sobre a representatividade da população negra trazem, por exemplo, informações sobre a participação dos negros em 250 filmes comerciais, de 1995 a 2018, recortando as posições de produção, roteirista, diretores e atores; os números são deficitários mas representativos dos problemas em relação à participação da população negra. Nesse período, 0 (zero) mulheres negras estiveram presentes nessas produções e apenas 4% participaram como elenco; já entre os homens havia  apenas 2% de diretores negros. Além de ser baixa, a representação é bastante estereotipada.


“A indústria de autopeças emprega menos que a cadeia do audiovisual, que inclui o cinema, a tevê, área de publicidade e mídias digitais. Mas neste momento, a produção está bloqueada, as salas de cinemas estão fechadas.”

Noel Carvalho (Unicamp)


 

“Inovação seria pensar o negro no cinema não apenas enquanto tema, mas como presença, e trazer os dados como ciência para mostrar as desigualdades. A pandemia tem causado impactos negativos na cadeia de produção da área do audiovisual. O Brasil não tem uma produção pequena em comparação com a França e Estados Unidos, mas emprega muita gente nessa área. A indústria de autopeças emprega menos que a cadeia do audiovisual, que inclui o cinema, a tevê, área de publicidade e mídias digitais”. Mas neste momento a produção está bloqueada, as salas de cinema estão fechadas”, destaca Noel.

A pandemia da Covid-19 acelerou o processo de migração para o contexto digital, prejudicando a experiência de ir ao cinema, mas por outro lado surgem novos hábitos. “Partimos de um contexto ruim no cinema, pois os negros em geral não fazem parte do mainstream em cargos de liderança. No entanto, há muitos negros na cadeia de produção, como fotógrafos, assistentes e iluminadores, entre outras áreas de base. O aumento significativo do streaming também aumentou o desemprego nessa área”, diz Noel. Criação de conteúdo por meio de audiovisual aponta para múltiplas áreas de trabalho, desde a pré-produção até a prestação de contas e o reconhecimento público na execução.

O professor ressalta ainda que o governo federal tem contribuído para uma desconstrução da economia da cultura. “Se não temos uma classe média envolvida neste tema, perdemos espaço de participação, de inovação e oportunidade de contar as nossas histórias. É no poder que se fazem as transformações, na política grande, nos lugares de decisão, no governo federal, nas cúpulas dos partidos. Precisamos ocupar os espaços decisórios, nas áreas de cultura, tecnologia e inovação, especialmente no governo federal”, conclui.


 

“No Brasil e nos Estados Unidos, são as pessoas mais vulneráveis que estão morrendo, é a população negra. Então precisamos ter o olhar mais reflexivo em relação aos números e o questionamento que devemos fazer é o que afinal mudou nesses 132 anos?”

Carlos Machado – USP


 

Na visão do professor Carlos Machado, é importante saber o que a data de 13 de maio) representa, os 132 anos da libertação dos escravos e o papel da princesa Isabel, que não é heroína. ”Nesse processo específico da pandemia, muitas mortes estão ocorrendo na periferia e poucas pessoas estão preocupadas com isso. Quando pegamos os dados do Brasil e dos Estados Unidos, são as pessoas mais vulneráveis que estão morrendo, é a população negra. Então precisamos ter um olhar mais reflexivo em relação aos números e o questionamento que devemos fazer é o que afinal mudou nesses 132 anos? O capitalismo não vai acabar e é até possível que se transforme. Mas dentro dessa realidade que é branca e tem o poder do controle, nós só vamos conseguir nos libertar na medida em que tivermos acesso de fato à informação real, a todo o legado que foi construído pela população negra nos últimos anos. A civilização mais antiga é a civilização africana, os primeiros povos a habitar a Terra. Contar essas histórias desde o ensino fundamental e nas universidades vai nos libertar e nós vamos conseguir ter autoestima para poder trazer de volta o nosso processo de liberdade mesmo”, afirmou o professor Carlos Machado.


 

“Cerca de 80% dos empreendedores brasileiros não têm dinheiro de reserva guardado e cerca de 47% planejam pedir ajuda para amigos e familiares para superar as dificuldades impostas pelo atual momento da economia. A maioria não tem certeza se conseguirá manter o negócio de pé”.

Lara Lages – Desabafo Social


 

No painel Reinvenção, o foco foi discutir como se reinventar em um momento de crise em que a população negra é a mais afetada. A jornalista Lara Lages, responsável pela área de comunicação do Desabafo Social, laboratório de tecnologias sociais aplicadas à geração de renda, apresentou uma pesquisa desenvolvida em parceria com a Afrotrampos, que mostra que os empreendedores negros encontrarão muito mais dificuldade em retomar seus negócios.

“Cerca de 80% dos empreendedores brasileiros não têm dinheiro de reserva guardado e cerca de 47% planejam pedir ajuda para amigos e familiares para superar as dificuldades impostas pelo atual momento da economia. O faturamento desses negócios é menor e gira em torno de R$ 3 mil e os seus principais setores de atuação são moda e gastronomia que, de acordo com o Sebrae, tiveram reduções de respectivamente 80% e 67%. A maioria não tem certeza se conseguirá manter o negócio de pé”, afirma Lara Lages.

Para ela, a reinvenção passa por fortalecer as redes. Fundamental é informação e conhecimento para transformar a realidade. Fortalecer o pequeno e micro empreendedor na gestão do todo e na saúde mental é papel da arte e da comunicação.

Samuel Gomes,  motion designer na Huia, apresentou uma pesquisa realizada pelo Instituto Responsa, que mostra um pouco do cenário da periferia em meio à pandemia, os novos hábitos que foram desenvolvidos e como esses hábitos geram novas tendências de negócios. Samuel ressaltou dois aspectos interessantes sobre o posicionamento das marcas nesse cenário: o sentimento de medo das pessoas que estão na periferia e pessoas negras versus um processo de romantização do processo de quarentena.

“Apesar do medo essas pessoas seguem trabalhando, seguem estudando, muitos estudantes não estão conseguindo estudar porque o acesso à internet ou não abrange essas regiões ou é um acesso muito limitado, sem falar que o custo é muito alto para essas pessoas. Essas realidades não deixam de ser uma solução para as marcas poderem realmente se conectar com esse público trazendo para além de processos de consumo, um processo de transformação social”, afirmou Samuel.

Para saber mais sobre as pesquisas, acesse os links

https://linktr.ee/desabafosocial

http://responsaag.com.br/pesquisacoronavirusnaperiferia/


 

“Com tudo que está acontecendo hoje, com a Covid-19 e com a crise econômica, vocês podem imaginar como é importante e relevante para qualquer empreendedor e, principalmente para um empreendedor negro, ter e estar numa rede de apoio”.

Breno Barlach – Plano CDE


Com uma perspectiva mais pragmática, o painel Retomada discutiu o contexto atual e as possibilidades para os empreendedores negros. Breno Barlach, gerente de projetos da Plano CDE, começou sua exposição destacando a importância de se entender o perfil do empreendedor e como cada perfil funciona. A partir disso, um dado importante é que todo empreendedor começa um negócio por necessidade e está fora dos radares e das redes de apoio. “Com tudo que está acontecendo hoje, com o coronavírus e com a crise econômica, vocês podem imaginar como é importante e relevante para qualquer empreendedor e, principalmente para um empreendedor negro, ter uma rede de apoio”, destacou Breno.

Esse universo é formado por empresas pequenas e os empreendedores negros cultivam um forte vínculo com a identidade negra, apesar da barreira que os impede de se verem como empreendedores negros. “É preciso conhecer esses aspectos do perfil desses empreendedores, especialmente nesse momento de crise, pois a rede é extremamente importante para apoiar a retomada dos negócios”, comentou Breno.

Outro ponto trazido pelo gestor da Plano CDE são as políticas públicas endereçadas às questões do coronavírus, mas que não são suficientes. “O questionamento que fica é se essas políticas estão sendo postas para todas as pessoas que precisam ter acesso a elas. Podemos fazer nesse ponto a conexão com acesso à tecnologia. Por exemplo, ter acesso ao apoio que o governo federal está oferecendo. Como muitas pessoas não têm acesso a tecnologias que são necessárias para sacar e para ter acesso às contas digitais, isso acaba gerando um problema para essa parcela que acaba tendo que ir para as agências bancárias e, justamente, colocando essa parcela da população em risco. As políticas públicas relacionadas à Covid-19 não dialogam diretamente com o perfil dos afroempreendedores”, comentou Breno.

“A política de renda básica não atinge todo mundo que vai precisar dela, pois há perfis de empreendedores que estão fora e que têm renda muito variável. São os que vão perder muito da sua renda nesse processo e estão fora do critério da renda básica. Mas quando é o caso de empréstimo para pagamento de salários, também não faz muito sentido para ele que é um pequeno empreendedor e não tem funcionário. Ele não pode se endividar, mesmo que a juros muito baixos sem saber quando vai ser a retomada,” concluiu Breno.


 

“As tecnologias são criadas na grande maioria por engenheiros brancos e os empreendedores negros estão fora desse processo de criação. Muitos não têm acesso à tecnologia, têm que brigar por ela.”

Sil Bahia – Olabi/PretaLab


 

Sil Bahia, da Olabi/PretaLab, começou sua fala com uma provocação: será que as tecnologias são racistas? “As tecnologias são criadas na grande maioria por engenheiros brancos e os empreendedores negros estão fora desse processo de criação. Muitos não têm acesso à tecnologia, têm que brigar por ela. Quando a gente pensa em tecnologia a gente não está falando só de celular. Estamos falando de acesso a dados, a ferramentas, a conhecimento. Nesse ponto – do conhecimento – existe uma questão fundamental, que é o gap de informação e a consequência de você liderar pessoas com relação a tecnologias. Mostrar que existem referências negras, apesar de ainda serem poucas. Tentar aproximar mais as pessoas das tecnologias e, além da internet, tentar entender melhor e passar informação sobre a estrutura de codificação e de como funciona a tecnologia, e dar um apoio. No que se refere a compartilhar conhecimento, podemos pensar em ter uma rede fortalecida, que dê suporte e apoie aqueles empreendedores que já aprenderam para que possam passar esse conhecimento adiante”, afirmou Sil Bahia.

“Não estamos acostumados a questionar as tecnologias desenvolvidas, mas quero passar a mensagem de que vamos precisar, agora mais do que nunca, forçadamente, pensar como podemos romper com essa bolha e ter uma relação mais qualificada com esse universo de internet e de tecnologia. Essa coisa do analfabetismo digital tecnológico é mais do que nunca urgente. Não se trata só de acessar uma sala no Zoom, mas na verdade quis plantar uma semente da curiosidade para que a gente pudesse de fato mergulhar melhor nesse universo”, afirmou Sil.