O potencial inexplorado das inovações no setor público

Haroldo Torres: "Agenda pública na área de inovaçao não é nada simples, mas extremamente necessária"

Livro de Haroldo Gama Torres mostra as dificuldades para a incorporação de inovações no setor público e para a oferta de serviços sociais por startups inovadoras

Graças a sua rica experiência de trabalho como demógrafo, economista, sociólogo, pesquisador e consultor, nas áreas pública e privada, e também como como empreendedor, Haroldo da Gama Torres acumulou durante vários anos amplo conjunto de conhecimentos e reflexões agora compartilhadas em seu livro Políticas Sociais e Startups, o Potencial Inexplorado das Inovações, destinado a empreendedores, investidores, gestores públicos, organizações sociais e estudiosos do ecossistema de negócios de impacto socioambiental.

O livro de Torres, que pode ser baixado gratuitamente aqui, discute os desafios históricos das políticas sociais no Brasil e o papel do setor público, das famílias, do setor privado e do terceiro setor. Lança também um olhar para a capacidade de consumo dos mais pobres, as políticas sociais e o mundo dos negócios, a educação e a inovação educacional, a saúde pública e a inovação em saúde e os desafios das soluções urbanas.

Lançada em live da Plano CDE, dia 20 de outubro, a obra de Torres destaca como ponto principal o limitado número de startups que conseguem chegar aos mercados de serviços sociais públicos nos setores de saúde, educação e soluções urbanas em geral, apesar da existência de milhares de startups e de toda uma geração de empreendedores que está querendo fazer a diferença, que está tentando atingir esses mercados e não está conseguindo fazer isso.

Na visão do autor, existe uma disfuncionalidade entre a intenção e a ação desses atores. Isso ocorre por causa de barreiras relacionadas às próprias startups e à capacidade do Estado de incorporar novas tecnologias.

Na área de educação, Torres observou que são muito poucas as startups que chegaram ao mercado, apesar da importância de algumas delas, em geral apoiadas por institutos e fundações. Mas, no âmbito de uma lógica das contas públicas, são muito reduzidas as contratações relevantes. Para Torres, “isso é muito frustrante”, porque algumas dessas startups possuem avaliações de impacto, evidências de que transformaram a qualidade da educação.

No setor de saúde, o quadro é um pouco menos grave porque já existe uma massa crítica maior, um grau de coordenação maior. Empresas como a Magnamed, que “estourou agora” durante a pandemia ao conseguir vender cinco mil respiradores para o Ministério da Saúde. Além disso, começa a haver no campo da saúde uma abertura maior para a participação de algumas startups, mas mesmo assim isso ainda é menos disseminado.

Há também algumas startups como a que criou o app Glic, com sua metodologia para auxiliar o portador de diabetes no seu processo de tratamento, que gera uma função de utilidade pública, independente de a startup estar vendendo ou não para o setor público.

Na verdade, diz Torres, para a gente começar a compreender esse universo, é preciso olhar para o sistema de bem estar social. “Você tem o setor público, mas ele não é o único provedor. Quando se pensa em uma política de educação, por exemplo, tem as famílias auxiliando as crianças a aprender, a comprar livros e, também, vivendo a vida da escola. Você tem o setor privado como fornecedor de livro e equipamentos para o setor público e o terceiro setor, que dá apoio técnico ao Estado e atua de forma diversificada nesse processo”.

Segundo Torres, para cada política pública esse arranjo é diferente, muito diferente em educação, em saúde e em saneamento básico, onde há empresas estatais oferecendo serviços. Quando se pensa nesse contexto, “a gente encontra uma diversidade muito grande de atores nesse ecossistema. “Você está falando, por um lado, do terceiro setor, de vários atores no âmbito dos mercados, da academia, do governo”.

Ao analisar os padrões de interação e cooperação entre esses diferentes tipos de atores, Torres observou que o governo tem relativa facilidade de interagir com a academia. Com o terceiro setor também há alguma cooperação, mas há dificuldades em trabalhar com empresas, especialmente com as startups. A conexão entre o mercado e a academia é mais travada e problemática no Brasil. Existe em toda a literatura sobre inovação uma discussão sobre a dificuldade crônica da academia de produzir conhecimento utilizável e de interesse das empresas, apesar dos esforços do BNDES e das agências de fomento.

Mesmo com esses problemas, Torres acredita que existe um espaço muito grande de atuação para as startups: os governos locais. Segundo ele, muita gente, quando se fala nesse assunto, pensa em uma política federal ou em uma lei geral de startups. Isso é importante, mas existem muitas coisas que podem ser criadas e desenvolvidas nas esferas municipal e estadual, por meio da atuação em várias frentes diferentes. É preciso colaborar com quem está investindo nessas startups, falar com os mercados fornecedores, parceiros, competidores, além de cuidar do desenvolvimento de uma cultura empreendedora, discutir as políticas públicas e a infraestrutura de um ambiente de inovação para que haja um desenvolvimento de um ambiente de inovação saudável.

Na conclusão do livro, Torres afirma que “o tema da inovação é cada vez mais crítico para diferentes dimensões da sociedade humana. A cada dia, nossa existência é afetada pela introdução de novos produtos e serviços, assim como pelas transformações de soluções já existentes. Instrumentos essenciais de diagnóstico de saúde, como os de ressonância magnética, por exemplo, só passaram a ser popularizados a partir da década de 1980. A Internet, por sua vez, não existia antes de 1995. As redes sociais e os telefones inteligentes são fenômenos dos anos 2000. E soluções e serviços que atendem hoje milhões de brasileiros, como WhatsApp, Uber, Nubank e ifood, têm todas elas menos de dez anos de existência”.

No caso dos serviços públicos, é estratégico assegurar “o fortalecimento e a promoção de inovações com potencial de contribuir para o aumento do bem-estar da população; e a incorporação nas práticas de gestão pública de uma perspectiva inovadora, que contribua de verdade para para melhorar e ampliar a oferta de serviços sociais, assim como para fortalecer e baratear os processos de provisão”.



O grande mercado para as soluções inovadoras

Texto de Maurício de Almeida Prado, diretor executivo da Plano CDE, na apresentação do livro de Haroldo Torres

“Desde a estabilidade econômica de 1994 – e com um impulso gerado pelas políticas de inclusão da primeira década de 2000 – um grande número de famílias brasileiras das classes CDE obteve aumento de renda real e melhoria do bem-estar dentro de suas casas: domicílios ampliados por reformas, famílias adquirindo sua primeira geladeira, máquina de lavar roupas e motocicleta, e a cesta de consumo de alimentos se ampliando. Além do acesso a bens de consumo, porém, continuava a ser grande o desejo de uma vida melhor, com serviços públicos de mais qualidade, principalmente nas áreas de educação, saúde e transporte.

A Constituição de 1988 foi um marco importante para as políticas públicas de bem-estar social no Brasil, que vêm sendo bastante ampliadas desde sua promulgação. O SUS permitiu a oferta de atendimento universal de saúde, e houve ampliação da cobertura do ensino básico. No entanto, em 2020, ainda enfrentamos demandas de serviços não atendidas. O Brasil deixa cerca de 33% dos seus jovens sem completar o ensino médio e tem graves problemas de qualidade na educação, figurando nas últimas posições de rankings internacionais. O sistema de saúde enfrenta sérios problemas de atendimento e qualidade, apenas 50% dos domicílios possui serviço de água e esgoto, e questões de transporte e mobilidade afetam a vida de milhões de famílias que moram longe dos grandes centros.

Considerando essa situação e as sérias restrições fiscais do Estado, não é de se estranhar que a inovação em serviços públicos passe a ser uma das grandes saídas para o desenvolvimento de soluções que atendam às necessidades de melhores serviços públicos, sem grande ampliação das despesas do governo. Em todo o mundo, quem lidera esse processo de inovação e transformação econômica é o ecossistema de empreendedorismo e startups, gerando grandes mudanças em todas as áreas de nossas vidas. Os governos e o terceiro setor já perceberam os benefícios de parcerias com a iniciativa privada para acelerar seus processos de inovação: as startups podem oferecer soluções inovadoras para complementar e inspirar o trabalho do poder público na ampliação da cobertura e na melhoria da qualidade dos serviços.

Modelos de negócios que resolvem necessidades em outros países em desenvolvimento, como o bastante citado caso do microcrédito de Muhammad Yunus em Bangladesh, nem sempre se aplicam às condições brasileiras. Temos um Estado atuante que oferece serviços universais, ainda que muitas vezes de qualidade duvidosa, e nosso histórico de burocracia dificulta as compras governamentais de inovação em serviços públicos. O caminho para os empreendedores com foco em bem-estar social é bastante tortuoso, e é grande a dificuldade de se encontrar modelos de negócios – se, por um lado, é difícil vender inovações para o governo, por outro há enormes desafios para negócios com foco em venda direta para consumidores de baixa renda.

Nesse contexto, este livro traz uma ótima contribuição para todos que trabalham no setor. Com seu amplo conhecimento, tanto de políticas públicas de bem-estar social como do ecossistema de empreendedorismo, Haroldo Torres consegue dar um panorama da história das políticas públicas de bem-estar, passando por dados de consumo das famílias e chegando a desafios e casos de empreendedores em educação, saúde e soluções urbanas. Por fim, temos uma visão geral dos desafios de inovação no setor público.

Haroldo foi participante privilegiado desse ecossistema, não apenas como consultor de inúmeras startups, mas também vivenciando a complexidade de ser empreendedor nas empresas Plano CDE e Din4mo. São suas observações dos últimos 10 anos que lhe permitem trazer grandes aprendizados e casos sobre os desafios e as soluções para esses empreendedores, bem como mostrar algumas das peculiaridades do mercado brasileiro.

Na Plano CDE, participamos deste ecossistema de inovação social desde a fundação, gerando conhecimento sobre o público da base da pirâmide no Brasil – aquele que mais demanda soluções de melhoria de bem-estar. Nosso trabalho se baseia na conexão entre três setores fundamentais para inovação, de acordo com o que Haroldo analisa ao longo do livro: empreendedorismo, governo e terceiro setor. Com pesquisa, consultoria de inovação e de avaliação de impacto, atuamos auxiliando organizações que trabalham com educação, saúde, inclusão financeira e soluções urbanas a entender as necessidades e desenvolver soluções para melhorar a vida das famílias de classe CDE no Brasil. Haroldo participou dessa historia como fundador e idealizador da Plano CDE e hoje, além de parceiro estratégico, é um amigo que inspira nossa trajetória. O apoio a esta publicação consolida esta parceria de conhecimento.

Enfim, esta é uma leitura fundamental para empreendedores, gestores públicos, de organizações da sociedade civil e de grandes empresas que trabalham com inovação e soluções para políticas de bem-estar social no Brasil.”