Metodologia ByNecessity, da Besouro, transforma pessoas em situação de vulnerabilidade social em empreendedores

O aluno Bryan Moraes, que faz camisetas, e Vinícius Mendes Lima, da Besouro. Foto: Divulgação

Um pequeno negócio não precisa do conhecimento e de todas as ferramentas de gestão de um grande negócio; precisa sim gerar renda rápido porque o empreendedor tem que se sustentar e alimentar a família. Esse é o princípio básico da metodologia ByNecessity, criada por Vinícius Mendes Lima, da Besouro, a partir de uma dissertação sobre a gestão de micro e pequenos negócios nas maiores favelas do Brasil e da Argentina.

“Voa Besouro” – essa é a mensagem que marca os cases de sucesso da Besouro Agência de Fomento Social, fundada em 2014 por Vinícius Mendes Lima com o objetivo de levar pessoas em situação de vulnerabilidade social à posição de empreendedoras. E não foi por acaso: besouros têm casca grossa, sobrevivem em todos os ambientes da Terra.

A aplicação direta de um método de ensino de plano de negócios, conhecida como ByNecessity (Por Necessidade), já beneficiou milhares de jovens empreendedores de comunidades carentes em todo o país, gerando pequenos negócios e aquecendo as economias locais. “Em momentos de crise, quando cai a taxa de empregabilidade, o negócio próprio torna-se uma opção. São jovens que, com pouco recurso, arriscam-se em busca de uma fonte de renda. Os empreendimentos geralmente nascem nas próprias comunidades, como barracas de lanche e cabeleireiros, entre outros, tornando-se geradores de empregos e de lazer locais”, explica Vinícius.

Nascido na periferia de Porto Alegre e estudante de escola pública, Vinícius começou a empreender com 14 anos e sentiu na pele as dificuldades que todo empreendedor enfrenta. Ao migrar para a Argentina e cursar a Universidad de Buenos Aires (UBA), teve a oportunidade de se identificar com a realidade financeira de comunidades de baixa renda no país. A partir do desenvolvimento de estudos de mercado para uma dissertação sobre a gestão de micro e pequenos negócios das maiores favelas – uma no Brasil e outra na Argentina –, Vinícius descobriu um novo propósito.

Vinícius Mendes Lima: a metodologia de ensino de plano de negócios, conhecida como ByNecessity, já beneficiou milhares de jovens empreendedores de comunidades carentes em todo o país. Foto: Shállon Teobaldo

”Nesse estudo, a análise qualitativa não fazia parte da dissertação, mas comecei a anotar tudo que escutava dos entrevistados. E no final das contas, todos tinham os mesmos tópicos em comum com relação à abertura e desenvolvimento dos seus negócios. Eram tópicos muito parecidos com os que eu vivi, uma realidade muito semelhante à deles. A maioria não continuou os estudos, mas com relação a negócios eles pensavam como eu. Porque um pequeno negócio não precisa de todas as ferramentas e de todo conhecimento de gestão que um grande negócio com faturamento milionário demanda. Eram negócios com faturamento de dois a três mil reais por mês. O objetivo deles, e o meu também na época, era gerar renda, agregar renda na família e, para alguns, era a principal renda”, lembra Vinícius.


“Criei um modelo que as pessoas conseguiriam desenvolver em poucos dias, montar um negócio no papel e, a partir disso, colocar a ideia em pé”


Quando terminou o estudo, Vinícius foi convidado para lecionar a matéria Plano de Negócios na Universidade Federal de Buenos Aires. Resolveu então criar uma metodologia diferente para ensinar a matéria porque não acreditava no modelo tradicional nem nos modelos relativamente novos na época, como o Canvas, e alguns outros tipos de modelagem de negócios. “Eram modelagens muito abstratas para quem precisava de dinheiro no dia seguinte. Criei um modelo que as pessoas conseguiriam desenvolver em poucos dias, montar um negócio no papel e, a partir disso, colocar a ideia em pé”, explica.

Metodologia ByNecessity

Para o fundador da Besouro, existem dois perfis de empreendedores: um é o empreendedor por necessidade, outro é o empreendedor por oportunidade. “No Brasil, a grande maioria dos empreendedores é por necessidade porque as pessoas precisam de dinheiro para se sustentar e não porque encontraram uma oportunidade de mercado. Aí pegam o dinheiro que tem no bolso e vão investir. Por isso, criei essa metodologia, que é um plano de negócios por necessidade”, explica Vinícius.

A metodologia foi iniciada para alunos da Universidade Buenos Aires e, depois, foi trazida para o Brasil, para a Unisinos, em Porto Alegre, e para a Universidade Uniabeu, no Rio de Janeiro. “Esses centros universitários foram aperfeiçoando o modelo até que resolvi testar nas comunidades para ver se, de fato, funcionaria com pessoas em situação de vulnerabilidade social. A metodologia foi feita para a comunidade e eu estava atuando nas universidades. Testei em uma comunidade de Porto Alegre, outra de Buenos Aires (Argentina) e no Morro do Cantagalo, no Rio de Janeiro. Nessas três comunidades, o porcentual de alunos que tiveram contato com a metodologia e abriram um negócio em menos de 30 dias, chegou a 70%. Em menos de 30 dias, já estavam gerando renda, já estavam ganhando dinheiro”, afirma.


“Nós já atuamos em 212 municípios entre Brasil e Argentina e vamos agora para os países de língua portuguesa: Portugal, Guiné-Bissau, Angola, São Tomé e Príncipe, Moçambique, Cabo Verde e Timor-Leste”


O próximo passo foi apresentar a metodologia para ONGs e parceiros do poder público e prefeituras. Foi adquirida pelo Conselho Regional de Administração do Rio Grande do Sul e pelas prefeituras de Porto Alegre e Rio de Janeiro, que começaram a aplicar o método em comunidades de maior volume. “Para atender a demanda, a Besouro teve que ampliar a estrutura, contratar profissionais de diversas áreas e iniciar a formação de novos professores que hoje aplicam a metodologia em 148 municípios do Brasil. Nós já atuamos em 212 municípios entre Brasil e Argentina e vamos agora para os países de língua portuguesa: Portugal, Guiné-Bissau, Angola, São Tomé e Príncipe, Moçambique, Cabo Verde e Timor-Leste.

Turma de alunos empreendedores da comunidade Três Figueiras, em Alvorada,  RS. Foto: Divulgação

Inova Jovem

Em 2018, a Besouro foi contratada pela Secretaria Nacional de Juventude para desenvolver um projeto capaz de gerar oportunidade de emprego e de independência financeira para jovens moradores de comunidades de baixa renda. “Fomos contratados por causa da metodologia focada em comunidades. Não existe nenhuma outra no Brasil até hoje. O Programa Inova Jovem foi concebido para desenvolver empreendedorismo em periferia para jovens negros em vulnerabilidade social. A metodologia foi aplicada nas comunidades das 176 cidades mais violentas do Brasil, segundo o Indice de Violência Juvenil, feito pelo Fórum de Segurança Pública do Brasil. Nós atingimos um índice de 78% de negócios abertos, que foi maior que o nosso próprio índice institucional de negócios abertos no Brasil, depois dos alunos terem passado pela nossa metodologia. Nós atendemos 2.900 alunos e abrimos 2.101 negócios”, comenta Vinicius.

Mudança de mindset

O trabalho da Besouro se estende para a fase de incubação do negócio. Os participantes são monitorados semanalmente durante três meses por uma equipe treinada pela Besouro, o que garante que os negócios recém-criados realmente comecem a funcionar e não sucumbam às dificuldades do mercado. O monitoramento é realizado por meio de 12 indicadores. No final dos três meses, é traçado um gráfico: o aluno entrou com uma renda média de R$ 200, ou uma renda do Bolsa Família de R$ 200, por exemplo. No final de três meses, ele está faturando R$ 2 mil. Segundo o plano de negócios que ele montou com o professor, a margem de lucro líquida seria de 30%. Logo, ele tem uma renda – ou lucro líquido do negócio, de R$ 600. Se a renda é de R$ 600 hoje, o aumento foi de 300%.


Somente em 2018, pequenos negócios gerados a partir das aulas ministradas por professores treinados pela Agência Besouro somaram R$ 60 milhões.


”Parece pouquinho mas se você multiplicar R$ 600,00 por mil alunos, ou por mais de mil negócios, é significativo. O jovem ganhava R$ 200 e hoje está ganhando R$ 600,00. É um impacto gigantesco na economia e na vida dessas pessoas porque elas passam a entender que depende delas trabalhar mais para ganhar mais. Elas não dependem de pedir mais para o governo, de reclamar mais da vida. Elas entendem, se empoderam de que ‘eu sou capaz de gerar a minha própria renda’, ‘não dependo mais da minha mãe, do meu pai ou do empregador para quem estou entregando currículo’. ‘Eu vou vender doce e vou ter uma confeitaria daqui cinco anos, três anos’. A pessoa vai ganhar mais do que ganhava, inclusive no emprego formal. É uma mudança de mindset. A metodologia transforma a cabeça desses jovens. O capital é um fomentador de ascensão e, no momento em que ele começa a ganhar dinheiro, ele entende o mundo real. Vivemos num mundo capitalista, se a gente não tiver renda a gente não tem nada”, afirma Vinícius.

Somente em 2018, pequenos negócios gerados a partir das aulas ministradas por professores treinados pela Agência Besouro somaram R$ 60 milhões, valor que retornou ao país na forma de impostos e no aquecimento de economias locais.

Capilaridade

A metodologia ByNecessity representa uma boa alternativa para membros de comunidades em situação de vulnerabilidade que, em meio a um cenário de crise financeira, buscaram no empreendedorismo uma forma de gerar renda. A primeira parte do método consiste em um curso de cinco dias, com um total de 30 horas de aula, fazendo com que os participantes aprendam a desenhar um plano de negócios inicial.

Os cursos acontecem dentro de equipamentos públicos, nas comunidades. Os professores da Besouro já ministraram a metodologia nos mais diversos cantos do Brasil. “Os grupos são formados pelos assistentes sociais normalmente vinculados a prefeituras dos municípios. Ninguém sabe mais das comunidades do que os assistentes sociais dos centros de referência de assistência social. O Sistema Único de Assistência Social – SUAS, é ao meu ver, junto com o SUS, o órgão de maior capilaridade do Brasil, talvez do mundo, ao lado de China, Índia e Russia. Fora esses países, eu não tenho nenhuma dúvida de que nós temos a maior rede de acesso à população de baixa renda em vulnerabilidade do mundo, com o SUS e o SUAS. Apesar dos problemas, defeitos e até dos salários baixos, essa rede é formada pelas pessoas mais conectadas com a realidade das comunidades hoje. Eles são muito bem organizados. Poderia ser melhor, mais ativo, resolver mais problemas? Poderia, mas aí é uma questão de gestão pública. A capilaridade existe e as pessoas que estão ali são apaixonadas pelo que estão fazendo, realmente querem estar na ponta, querem bater de porta em porta e perguntar o que podem fazer para ajudar aquelas famílias que não têm condição de ascensão”, explica Vinícius.

Modelos personalizados

São 30 horas de curso, de segunda a sexta-feira, até trinta alunos por vez, para dar a atenção necessária. O professor monta o negócio junto com o aluno, um modelo de negócio personalizado. O aluno escolhe a cor, o logos, modelos, desenha a mão livre. Todas as ideias seguem para um sistema em Porto Alegre. Os designers criam as marcas do jeito que eles imaginaram. Cada  aluno recebe em 48 horas a sua marca, a identidade visual, que ele aplica no material, em panfleto, Whatsapp, Facebook, cartãozinho, faixa… onde ele quiser. E o negócio começa acontecer na segunda-feira próxima.

“A pessoa vem com a ideia de ganhar dinheiro pintando quadros em uma comunidade, por exemplo. O nosso papel é colocá-la no mundo real, fazê-la pensar, sem desmanchar o seu sonho. “Legal… mas tem alguma outra coisa que você poderia fazer? Gosto de fazer cachorro quente. Desenhamos então ‘Cachorro quente do fulano, criamos a marca do negócio e a proposta: ‘você pendura os quadros no lugar em que vai cozinhar para as pessoas verem e aí você tenta vender,” comenta.

Isso está sendo feito também na Argentina e nos países de língua portuguesa do mesmo jeito. E vai começar na Colombia no próximo mês e na Rússia em julho. É o Brasil exportando educação!

O criador da ByNecessity explica que o atendimento remoto é peça-chave. “Ninguém aqui é tratado por número. Todos são nomes, são empresários pequenos.  O cara que conserta o ar condicionado, mas que um dia pode ter uma indústria de conserto de ar condicionado. Nós trabalhamos para que os doceiros tenham uma confeitaria, ou duas ou dez… Já tivemos casos de alunos que começaram algo no fundo de casa, uma barbearia, por exemplo, e já abriram em outros estados! Franquearam o negócio”, comemora Vinícius.

Professor de marketing na Universidad de Buenos Aires (UBA), Vinícius é autor de três livros sobre empreendedorismo e a realidade de pessoas menos favorecidas: “A Riqueza das Favelas”, em que compara o universo empreendedor em duas comunidades de baixa renda, Rocinha, no Rio de Janeiro, e Villa 31, nos arredores de Buenos Aires; “Canvas das Favelas”, onde aponta caminhos para a abertura de negócios a zero ou baixo custo, com uma série de dicas e exemplos de sucesso, e o “By Necessity”, onde desenvolve a metodologia que ajudou 4,8 mil pessoas a se transformarem em pequenos empresários.