Governo e negócios de impacto social: como destravar as compras públicas

Thais Zschieschang, da Adesampa; Beto Scretas, do ICE; e Rodolfo Fiori, da Muove

É muito difícil pensar em negócios de impacto sem fazer a vinculação com o governo, que é um grande comprador de serviços de saúde, educação e habitação

O papel do governo como regulador, comprador, fomentador e investidor foi amplamente debatido no encontro Conversas de Impacto, realizado no dia 26 de setembro, em São Paulo, pelo Impact Hub São Paulo, Sistema B e Vox Capital. A iniciativa reuniu especialistas, empreendedores e entusiastas pelo tema e ofereceu a oportunidade de esclarecer como funcionam as relações entre entidades públicas e negócios de impacto social.

O painel foi mediado por Beto Scretas, do Inovação em Cidadania Empresarial (ICE) e contou com a participação de Rodolfo Fiori, co-fundador da Muove Brasil e de Thais Zschieschang, responsável por Parcerias Estratégicas da Adesampa (Agência São Paulo de Desenvolvimento).

“O objetivo dessa série de encontros é retomar e continuar as conversas iniciadas no Fórum de Finanças Sociais e Negócios de Impacto, que foi um momento de grande articulação dos atores do ecossistema. Esse é o primeiro da série, que representa um esforço continuado”, comentou Luciana Brasil, diretora de marketing do Impact Hub.

Cenário complexo

O primeiro questionamento foi em relação ao papel do governo como comprador e as questões regulatórias que envolvem as compras públicas. “O Brasil tem 5.570 municípios e, desse total, 97% têm menos de 200 mil habitantes e gastam aproximadamente R$ 1 trilhão por ano. Cerca de 110 milhões de pessoas moram nessas cidades que dependem de políticas públicas. A capacidade fiscal e as responsabilidades foram descentralizadas na federação brasileira. Isso quer dizer que São Paulo ou um município do interior do Piauí têm as mesmas responsabilidades que envolvem serviços ultra complexos. Uma criança até 9 anos é responsabilidade do município, que tem de educá-la para conduzir ao ensino médio. Da mesma forma, a atenção de saúde básica é responsabilidade do município. São áreas estratégicas que demandam recursos financeiros e alta complexidade de implementação. Não é fácil fazer isso”, afirmou Rodolfo Fiori.

Se o governo federal tem dificuldade com sistemas de alta complexidade, questionou Rodolfo, a situação fica ainda mais difícil em um município pequeno do interior do Piauí ou mesmo de São Paulo, que não tem capital social. “Nem 30% dos prefeitos e funcionários dessas cidades têm ensino superior e ganham em torno de R$ 2 mil/mês. No meio de tudo isso, existe a lei 8666, que regula o processo de compras públicas. Ela é de 1993 e passou por poucas alterações que, por sua vez, não facilitaram os processos de compra de inovação. Esses municípios têm a responsabilidade, têm dinheiro, mas não têm respaldo para comprar inovação ou produtos de empresas que podem oferecer serviços de qualidade. E não faltam soluções desenvolvidas por empreendedores que tentam resolver os problemas das cidades”, explicou Rodolfo.

Na avaliação dele, é necessária uma revisão do pacto federativo e o aprimoramento do ambiente regulatório das agências. “Se conseguirmos destravar um pouco as compras públicas, certamente mais negócios vão florescer. Com isso, é possível construir capital social e fazer melhor. Há muito dinheiro sendo gasto de uma maneira que não fomenta os negócios inovadores”, afirma.

Beto Scretas deu seu depoimento sobre a Enimpacto (Estratégia Nacional de Investimentos e Negócios de Impacto), capitaneada pelo Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC). Leia mais na reportagem Grupos de Trabalho avançam na implementação da Enimpacto, no portal Notícias de Impacto.

“A iniciativa partiu de uma das recomendações da Aliança pelos Investimentos e Negócios de Impacto que, durante dois anos, realizou esforços no sentido de engajar o governo. A partir de um convênio firmado com a secretaria de Inovação e Novos Negócios (SIN), a ideia tomou corpo e a Enimpacto foi criada em dezembro de 2017 por meio do decreto presidencial nº 9.244/17, com o objetivo de pensar no tema e desenvolver soluções. Hoje a Estratégia envolve diretamente 57 organizações, sendo sete ministérios, 16 órgãos públicos, bancos públicos, agências de fomento (Apex) e 10 membros da sociedade civil. O Brasil é pioneiro, o único país que conseguiu implementar uma política nacional”, comentou Scretas.

”Vou surpreender vocês afirmando que tem gente muito boa no governo. Existem ilhas de excelência como o programa InovAtiva, do MDIC, que existe há quatro anos. O programa acelera mil startups por ano (500 por semestre) e há um ano e meio, foi feito um recorte – o InovAtiva de Impacto – para apoiar negócios de impacto socioambiental. É um programa bem-sucedido, conta com um corpo de mentores de excelente nível”.

Demanda

Beto Scretas observou que é muito difícil pensar em negócios de impacto sem fazer a vinculação com o governo, que é um grande comprador de serviços de saúde, educação e habitação.

Rodolfo Fiori falou sobre as dificuldades que a Muove Brasil, um negócio de impacto social, enfrenta para vender ao governo. “Nós vendemos um serviço que, por meio de plataformas, qualifica a atuação de organizações e governos municipais. Com tecnologia e metodologia de pessoas, o serviço ajuda o município a equilibrar suas finanças e aponta onde gasta errado. A situação é muito crítica em 86% dos municípios. Eles precisam de ajuda e não sabem identificar os problemas. Só que a legislação diz que não pode haver diálogo entre o governo e as empresas que vendem serviços ou produtos. O primeiro passo de uma licitação é a elaboração do Termo de Referência do produto/serviço. Nós não podemos ajudar nessa tarefa, é proibido por lei. Mas se o TR não for suficientemente técnico, a licitação acaba atraindo “aventureiros”. É necessário criar mecanismos que possibilitem o relacionamento entre governos e negócios”, esclarece Rodolfo.

Thais Zschieschang, da Adesampa, argumentou que a contratação de compras específicas deve ter como base a resolução de um problema. “Em São Paulo, que conta com uma estrutura mais robusta, a construção de um Termo de Referência passa por quatro pessoas. Por isso, algumas inovações não começam por São Paulo, apesar do mercado local fazer sentido. Outro ponto importante é fazer uma pesquisa de mercado sobre todas as características do problema para amarrar uma solução ideal. Quanto maior o conhecimento do mercado e de possíveis soluções, você pode provocar um player a desenvolver. Entendo que nem todo mundo tem a capacidade técnica local de fazer dessa forma porque minha visão é limitada a São Paulo. Para inovar, existem dificuldades na construção do próprio termo. Às vezes, é preciso até uma lei para regular a transferência de recursos como foi o caso do Programa Vai Tec. Isso não deve ser um impeditivo”, explica Thaís.

“Os problemas são incomuns, se pensarmos em grandes temas da esfera social, mas ao mesmo tempo, as resoluções têm que ser locais. A solução para um determinado problema pode ser diferente de município para município, porque depende da natureza, do momento histórico e dos players envolvidos com seus jogos de poderes. Além das possíveis soluções serem individuais, nós não temos a cultura de pensar em demandas locais. Tendemos a sistematizar a resolução e, no caso de investimentos sociais, temos que prestar mais atenção e adaptar os produtos para as localidades”, afirma Thaís.

A Adesampa opera em colaboração com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento do Trabalho e Empreendedorismo de São Paulo (SDTE) na formulação de propostas e na implantação de políticas públicas elaboradas de forma participativa, que promovam o desenvolvimento local sustentável. A organização estimula o protagonismo do Micro-Empreendedor Individual – MEI, das Micro, Pequena e Média Empresas, das Cooperativas de Economia Solidária e das Organizações da Sociedade Civil. Com o Programa Valorização de Iniciativas Tecnológicas (Vai Tec) o objetivo é incentivar jovens empreendedores de regiões periféricas da cidade a transformar ideias inovadoras em negócios tecnológicos sustentáveis, em especial os ligados às tecnologias da informação e comunicação.

Esses encontros são mensais e dão continuidade às conversas iniciadas na última edição do Fórum de Finanças Sociais e Negócios de Impacto. Os próximos encontros estão agendados para os dias 31 de outubro e 28 de novembro.